sábado, 1 de junho de 2013

Bolsa Família é frágil e boato prejudicou governo, diz especialista


Boatos envolvendo o programa Bolsa Família causaram tumulto em 13 Estados brasileiros há duas semanas, reacendendo a discussão em torno da principal iniciativa do governo federal na área social, que completa dez anos em 2013.



Para a professora Celia Kerstenetzky, da UFF (Universidade Federal Fluminense), o Bolsa Família é necessário e deveria ganhar mais "segurança jurídica" do governo.
Titular da Faculdade de Economia e coordenadora do Cede (Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento), onde desenvolve pesquisas sobre o tema, Kerstenetzky, 55, critica ainda as condicionalidades do programa --como a exigência de filhos matriculados na escola-- que, para ela, pressupõem que os beneficiários podem ser "comprados" para mudar de atitude.
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Leia a seguir trechos da entrevista.
Folha - Qual a avaliação da sra. após a ida de milhares de pessoas às ruas, em pleno domingo (18), debaixo de chuva em muitos casos, por causa dos boatos?
Celia Kerstenetzky - O episódio expõe uma fragilidade do programa, no sentido de que ele seria mais bem protegido, e o receio de perdê-lo muito menor, se fosse um direito, se tivesse segurança jurídica. Posso imaginar a insegurança que os beneficiários sentem quando ouvem falar das frequentes críticas ao Bolsa Família.

Folha - Como isso poderia ser feito?
Estamos habituados a clamar por segurança jurídica para os negócios, mas o princípio deveria se aplicar, com mais pertinência ainda, a políticas voltadas para a imensa população privada de recursos materiais e oportunidades sociais. Nunca mais se falou em uma "consolidação das leis sociais", plano que foi ventilado ao final do governo Lula. Como está, o Bolsa Família é um programa não juridicamente exigível, sujeito à disponibilidade orçamentária e ao governo da vez: temos mais pobres elegíveis do que os contemplados e o programa tem dez anos porque há dez anos temos continuidade de governo.

Folha - Mas o Bolsa Família já não é lei?
Trata-se, me parece, de uma questão de graus de garantia. Um problema é que ele não é um direito: diferentemente do Benefício de Prestação Continuada, que está na Constituição de 1988, o Bolsa Família não integra a Proteção Social Básica brasileira. A implicação é que não está assegurado a todo aquele que necessite a garantia dessa transferência de renda. Além disso, na ausência de uma legislação infraconstitucional que consolide as políticas sociais, tornando-as uma política de Estado, há menos certeza de continuidade.

Folha - Ao governo, o episódio dos boatos é mais benéfico, porque mostra a força do programa, ou prejudicial, devido a eventuais desgastes à imagem do BF?
Claro que não traz benefício algum aos principais interessados. Trouxe ansiedade e apreensão aos beneficiários e fez vir à tona um imbróglio administrativo ainda não completamente esclarecido. Como está sendo politicamente explorado, deve trazer benefício aos segmentos que apostam no desgaste do governo e/ou do programa.

Folha - O Bolsa Família é ainda hoje criticado pela oposição e setores da população. Qual é a sua conclusão sobre a existência do programa?
É preciso diferenciar a crítica dos que querem o programa mais seguro, mais abrangente e mais redistributivo, da crítica daqueles que não gostam do Bolsa porque creem que ele incentiva a dependência, é "assistencialista" ou tira recursos de usos mais eficientes. Alinho-me entre os primeiros, não apenas porque o argumento da dependência é factualmente falso (o beneficiário trabalha), mas sobretudo porque reconheço no nosso mercado de trabalho a marca disfuncional e na nossa estrutura desigual de oportunidades a marca da perversão. O Bolsa Família é um programa necessário e o será por muito tempo. Países desenvolvidos, que também têm pobreza, não dispensam programas de garantia de renda, e o Brasil não será diferente, ainda mais considerando o nosso passivo social.

Folha - Até quando?
O desejável é que, com a melhora da estrutura de oportunidades econômicas e sociais, o programa precise ser cada vez menor, em termos da proporção da população. Isso é o que ocorre em países desenvolvidos com grandes Estados do bem-estar. Para tal, seria necessário decisão política firme, heroica mesmo, dadas as condições brasileiras. Uma decisão do meu ponto de vista central é a garantia de 10% do PIB para a educação e a implementação plena do Plano Nacional de Educação.

Folha - As condições colocadas pelo governo federal para participação no programa são as ideais? A fiscalização é eficiente?
A ideia de condicionalidade me incomoda. Pressupõe que a mãe não quer o filho na escola ou não se importa com a saúde dele, mas que pode ser "comprada" para mudar de atitude. Certamente, um dos problemas é de informação: saber que o serviço existe e onde buscá-lo, conhecer melhor as consequências de ações preventivas de saúde. Será que isso se resolve de modo adequado por meio da ameaça de cortar o benefício? Estamos nos acostumando a uma cultura de incentivos que simplesmente ignora a agência moral das pessoas. Me preocupam os efeitos de médio e longo prazo disso: como previsões que se auto cumprem, as políticas sociais acabam transmitindo normas e modificando as pessoas. Outro problema evidente é a disponibilidade do serviço: o posto de saúde está lá? É acessível? E a escola, funciona, é boa, é próxima?

Folha - Dá para dizer que uma pessoa saiu da miséria graças a um reforço de R$ 70 mensais? (valor adotado pelo governo para o seu plano de erradicação da pobreza extrema)
Claro que não. A linha de pobreza do Banco Mundial não reflete a situação cotidiana de privação extrema de uma imensa quantidade de brasileiros que nem alimentação adequada tem, apesar dos rendimentos superiores.

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